quinta-feira, 2 de junho de 2011

Caro Merval Pereira, colunista do Jornal O Globo


Carta enviada ao jornal O Globo, referindo-se à coluna de Merval Pereira na edição de ontem, 1º de junho de 2011. (que pode ser lida no Blog do Noblat, na íntegra, aqui).

De: Diego
Para: merval@oglobo.com.br; cartas@oglobo.com.br

Caro Senhor Merval Pereira,

Pela primeira vez senti a necessidade de escrever-lhe, para pedir que reconsidere os termos e também os pensamentos que deram origem à parte de sua coluna de ontem, quarta-feira, 1º de junho.

Como um homem gay de 35 anos que sofreu violência e bullying na escola desde a mais tenra idade e que demorou muitos anos para lidar (sozinho) e finalmente aceitar sua condição 100% homossexual, gostaria de enfatizar para o senhor que os vídeos do kit anti-homofobia do governo federal em nenhum momento "faziam mesmo o elogio ao homossexualismo" ou "incentivam inclinações sexuais", como o senhor escreveu ontem.

O que o material faz é apenas dar à criança a partir dos 11 anos ou ao adolescente de 15 anos a clara percepção de que ele pode ser na escola, na família e na vida quem ele realmente é, que o que ele sente é normal e não algo vergonhoso que precise ser escondido ou exorcizado.

Creio ser ingenuidade do senhor acreditar que alguém, mesmo uma criança de 11 anos que teve acesso aos vídeos, se sentiria "incentivado" a ser gay, se nunca teve nenhuma inclinação para tanto.

A idéia de que, por causa de um kit anti-homofobia que mostra os gays como pessoas normais(e que foi aprovado pela Unesco, é importante frisar) crianças podem ser influenciadas a serem homossexuais é tão errônea e destrutiva quanto a idéia derivada desta, de que se pode "escolher" ser gay ou não.

Ninguém escolhe ser gay, não é uma "opção sexual". Ninguém escolhe sofrer preconceito, bullying e violência, muito menos quando se está em idade escolar.

A criança pode ser incentivada, isso sim, a assumir para si mesma, para a família e para os colegas e professores de escola uma vez que já seja gay, uma vez que já sinta naturalmente atrações por colegas do mesmo sexo.

O que a criança ou adolescente pode escolher é assumir o que ela já sabe que é ou viver uma vida dupla de dor e sofrimento, cumprindo o papel que a sociedade preconceituosa e certas religiões exigem "em nome da família" (como se gays não tivessem família, pais, mães, irmãos e mesmo filhos).

A percepção que os vídeos do kit anti-homofobia trazem aos jovens é primordial e necessária, pois na imensa maioria dos casos tais crianças e adolescentes gays que ainda não se assumiram sofrem muito por não terem com quem conversar, tirar dúvidas e principalmente por não terem exemplos nem referências positivas de que o que sentem é normal, e que elas merecem e podem ser felizes exatamente do jeito que nasceram.

Como o senhor já deve ter observado, a imensa maioria dos personagens gays na TV ainda cai no estereótipo caricato e que induz ao riso, como podemos ver por exemplo no seriado "Macho Man" atualmente no ar na Rede Globo.

Falar do assunto é necessário para evitar a violência cotidiana das escolas, que na esmagadora maioria das vezes passa despercebida pela equipe educadora das instituições; o mais comum tipo de bullying é aquele muitas vezes lento e sutil; e este é também um dos mais destrutivos, com seríssimas consequências para a vida adulta da pessoa.

Nenhum heterossexual de nenhuma idade passa a ser homossexual porque assistiu a vídeos, filmes ou palestras sobre o tema, com personagens gays que falam de seus sentimentos e que se beijam.

De qualquer maneira, mesmo se o senhor estivesse correto e se realmente o kit fizesse "elogios e incentivos à homossexualidade", não seria por causa de "elogios e incentivos" que uma criança ou jovem heterossexual se tornaria um homossexual.

Posso apresentar como prova disso a minha própria pessoa: cresci com todos os "elogios e incentivos" possíveis à vida heterossexual (na família, na escola, na igreja e na cultura como um todo, em filmes Disney como "Branca de Neve", "A Bela Adormecida", "Aladdin", em filmes romãnticos como "Dirty Dancing", "Titanic" ou "Ghost" e em toda a programação da TV aberta brasileira através de novelas e séries) e nem por isso me tornei um homem hétero. Eu nem quis tentar ser um, apesar de todos os "elogios e incentivos" à vida heterossexual. Continuo 100% gay e 100% orgulhoso disto.

Para finalizar, gostaria de pedir especialmente que um jornalista inteligente e respeitado como o senhor não utilize mais o termo "homossexualismo", pois o sufixo "ismo" denota doença.

Embora o senhor possa argumentar que existam milhares de outras palavras com este sufixo que nem de longe significam enfermidade (fato), o caso da homossexualidade é peculiar uma vez que de fato minha orientação sexual já foi considerada doença mental, sendo retirada pela Organização Mundial de Saúde da classificação como tal apenas muito recentemente.

Continuar a usar o termo "homossexualismo" reforça o estereótipo no inconsciente coletivo de que cidadãos como eu precisam de tratamento, algo que infelizmente muitas pessoas, inclusive formadores de opinião e líderes religiosos, acreditam até hoje.

Certo de contar com sua compreensão, agradeço a atenção dispensada.

5 comentários:

Thiago Lasco disse...

Parabéns pela iniciativa, Diego!

Daniel Cassus disse...

Nunca sei quando é Merval Pereira e quando Marques de Herval.

Uma Cara Comum disse...

Ahazou, Diegão!! por isso é que tenho orgulho de vc... ;)

Abraços!!!

Ramon disse...

E essa "sumidade" ainda foi eleita para a ABL...

Eduado disse...

Outro dia travei uma discussão com um sobrinho meu sobre o mesmo tema no FB.Êle, que até tem boa cabeça veio com essa afirmação absurda do incentivo,influência e coisa e tal em relação às crianças.Isso é tão falso quanto danoso, porque supõe que crianças têm que ficar afastadas de assuntos sobre sexualidade, quando é justamente o contrário. A sexualidade na criança começa a se definir entre os 7 e 8 anos de idade.A partir daí e é lógico com maior consciência a partir dos 12, 13 anos o indivíduo já sabe o que é.Então, esconder como se fosse crime a orientação sexual de alguém é abominável porque traz a rejeição, a discriminação e tudo o mais de ruim que nós conhecemos.Não li o artigo do Merval nesse dia e quero lamentar que êle tenha emitido opiniões tão deturpadas e atrasadas.A sua carta está excelente, lúcida e incisiva.Parabéns!